terça-feira, 6 de maio de 2014

A caixa preta das terceirizadas

Correio Braziliense/Guilherme Araújo e Simone Kafruni
Contratos fechados pelo setor público com prestadores de serviços não têm transparência. A situação é tão grave que nem mesmo os órgãos fiscalizadores, como o TCU, sabem exatamente em que condições mais de 87 mil trabalhadores atuam Funcionários terceirizados se encontram na hora do almoço para avaliar os seus constantes problemas. Companhias disputam contratos que somam R$ 8 bilhões por ano Trabalhadores sem receber rendimentos e direitos trabalhistas fazem protesto em frente ao Ministério da Justiça. "Não há controle algum. Faltam fiscalização e garantia do serviço prestado com uma qualidade mínima" Fábio Medina Osório, ex-promotor de Justiça.        

Os contratos bilionários de terceirização de mão de obra na Esplanada dos Ministérios são verdadeiras caixas-pretas, que nem mesmo os órgãos fiscalizadores, como o Tribunal de Contas da União (TCU), conseguem detectar as irregularidades e evitar a sangria dos cofres públicos. A farra é tamanha nesse mercado de mais de R$ 8 bilhões anuais, que os calotes nos trabalhadores viraram rotina. O caso mais recente envolve a Renender, que atuava no Ministério das Relações Exteriores (MRE) e na 10ª Procuradoria Regional do Trabalho do Distrito Federal, vinculada ao Ministério Público do Trabalho (MPT).

A empresa desapareceu ontem, deixando cerca de 40 funcionários com mais de dois meses de salários atrasados e encargos sociais pendentes. A dívida chega a R$ 111,4 mil. O Sindicato dos Empregados em Empresas de Serviços Terceirizáveis no Distrito Federal (Sindiserviços), ao não encontrar mais os responsáveis pela empresa, encaminhou ofícios ao MRE e ao MPT informando os débitos referentes a remunerações não pagas, a rescisões contratuais e a vales transporte e alimentação.

O descaso é tamanho que, mesmo o Sindiserviços denunciando o golpe, o Itamaraty, que terá de pagar R$ 68,4 mil, informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que não localizou o contrato com a Renender nem sequer conhece a empresa que destinou mais de 30 pessoas para trabalhar no órgão. Já o MPT reconhece a contratação de cinco recepcionistas e uma copeira, que cobram R$ 43 mil. Mas o sindicato assegura que são oito os funcionários terceirizados.

A Renender, que recebeu antecipadamente os recursos, já havia alertado sobre a sua incapacidade de honrar os compromissos com os trabalhadores, mas o MPT garantiu que tudo está em ordem. Ou seja, os terceirizados continuam prestando serviços ao órgão, e os salários estão em dia. “Esse descompasso de informações só reforça o quanto a situação está fora de controle e as empresas fazem o que querem”, diz um funcionário do Ministério do Planejamento que lida com o assunto. “Vários órgãos estão pagando duas vezes os contratos. Para as empresas, que somem com o dinheiro público, e para os trabalhadores, que ficam sem os rendimentos”, complementa.

Desprotegidos 
Dados compilados pelo Correio indicam que pelo menos 87 mil terceirizados prestam serviços na Esplanada dos Ministérios. Mais de metade deles já foram vítimas de golpes e não conseguiram reaver os direitos. Como dependem desses empregos para viver, acabam se submetendo às irregularidades. Saem de uma empresa para outra acreditando que não serão mais ludibriados. Esse processo de autoenganação foi rotina para uma ex-funcionária da terceirizada Works, que presta serviços ao Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). Sem se deixar identificar, temendo retaliações, ela conta ter percebido a diferença do valor de recolhimento de FGTS que a empresa informava no contracheque e o que realmente era depositado no banco. “A divergência ocorria desde 2011. Fui reclamar e me demitiram”, afirma.

Nem mesmo os casos reincidentes de descumprimento dos contratos, falência das empresas ou as denúncias de companhias que atuam irregularmente na Esplanada mobilizam o governo a reagir aos abusos. Um passo à frente foi a criação do Portal da Transparência, para tentar dar alguma visibilidade aos contratos, mas nem os servidores públicos sabem como funciona a ferramenta. Muito menos conseguem explicar como achar informações nessa plataforma virtual.

O Correio levou mais de quatro meses para obter com órgãos federais dados sobre terceirizados. Muitos ministérios informaram o que acharam melhor ser publicado, mas, mesmo assim, com informações desencontradas do Portal da Transparência. Alguns se negaram a conceder dados detalhados. O Ministério do Planejamento, por exemplo, responsável por controlar os gastos da administração federal, informou que o governo pagou cerca de R$ 2 bilhões às empresas no ano passado. No Portal da Transparência, a despesa assinalada é quase quatro vezes maior: R$ 8 bilhões.

Em nota, o Planejamento ressaltou que as respostas enviadas ao Correio têm origem no Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi) e a informação extraída do Portal da Transparência, administrado pela Controladoria-Geral da União (CGU), “não guarda relação direta com as contas contábeis”. Para a Controladoria, o valor que consta no portal é o correto. Ciente desse descompasso, o TCU recomendou ao Planejamento que melhore as formas de contratação de mão de obra não concursada.

Nem BC escapa 
Os bancos do governo pecam na organização. Em quatro meses, o Banco Central não conseguiu levantar os dados completos dos contratos com terceirizados. Segundo a instituição, que tem como missão preservar o poder de compra da população, não há um departamento responsável pela fiscalização das empresas prestadoras de serviço, sendo cada setor responsável pelas suas licitações. A Caixa Econômica Federal omitiu os dados de contratações, quais são as empresas e quanto gasta por ano. O Banco do Brasil, por sua vez, forneceu números gerais, também sem os detalhes solicitados.

Tal falta de organização sobre os contratos de terceirizadas coloca em xeque o controle dos órgãos federais em relação à transparência sobre onde e como é gasto o dinheiro público. Por trás desse descaso, há o interesse de funcionários públicos, que levam vantagens em acobertar as irregularidades para privilegiar uma ou outra empresa.

“Não há controle algum. Faltam fiscalização e garantia do serviço prestado com uma qualidade mínima. Mas todas as estatais estão sujeitas à Lei 8.429, de improbidade administrativa”, sublinha Fábio Medina Osório, ex-promotor de Justiça. Para o especialista em contas públicas, está na hora de o governo começar a punir os culpados. “O enriquecimento sem causa aparente de agente público pode denotar responsabilidade. O funcionário que tem um padrão de vida incompatível com o que ganha precisa ser investigado pela Receita Federal e pela Polícia Federal. E cabe aos cidadãos exigirem uma fiscalização rigorosa”, finaliza.

Barato sai caro 
O órgão que contrata o serviço de uma empresa sem capacidade econômica e financeira herda a dívida dos salários dos funcionários. “Contratar pelo menor preço é o famoso barato que sai caro”, afirmou o professor de Finanças Públicas da UnB Roberto Piscitelli. “As empresas deveriam ser impedidas de participar de outras licitações e o nome dos donos, colocados num sistema, assim seus bens seriam bloqueados”, disse. Na prática,  ocorre o contrário. As empresas fecham, os empresários abrem firmas com outro CNPJ e continuam dando golpes.

Medidas positivas 
Especialistas garantem que houve avanços para garantir o cumprimento dos contratos, como  a Instrução Normativa nº 6, que pretende proteger trabalhadores e criar mecanismos para melhorar a fiscalização. A norma prevê maior rigor nos critérios de habilitação técnica, econômica, financeira e jurídica das firmas. Outra medida considerada positiva é a Lei 12.846, que pune  dirigentes de empresas, em vigência desde janeiro. Mas o efeito prático ainda é desconhecido. “Falta estatística para saber como estão sendo aplicadas as normas e que irregularidades estão sendo atingidas”, ressaltou o ex-promotor de Justiça Fábio Medina Osório.

A caminho da Justiça 
Como falta fiscalização dos órgãos públicos sobre a prestação de serviços, as irregularidades nos contratos de terceirização acabam parando na Justiça. Nessa toada, vários processos movidos desde 2011 por empregados do Grupo Fiança, que fornecia mão de obra de limpeza e vigilância para órgãos públicos da União e do Distrito Federal, chegaram à fase de execução.

Com a venda de um imóvel em Angra dos Reis (RJ), pertencente ao grupo, a Justiça do Trabalho arrecadou R$ 3,2 milhões para quitar dívidas trabalhistas de parte dos 1,9 mil processos já julgados. Os pagamentos começam a ser realizados em maio. Em abril, R$ 2,1 milhões foram usados para arcar com 717 processos, obtidos com a venda de um imóvel do grupo, em Brasília.

Para o segundo juiz titular da 6ª Vara do Trabalho, Antônio Umberto, com a venda de imóveis é possível obter mais rapidamente os valores para pagar os passivos. “É mais rápido do que fazer o leilão dos bens”, diz.

O professor de finanças públicas da Universidade de Brasília (UnB) Roberto Piscitelli avalia que as coisas só chegam a esse ponto porque, no momento da licitação, não existia a prerrogativa de fazer uma auditoria para verificar a contabilidade e a estrutura de custos das empresas que disputam o pregão. “Os ministérios deveriam fazer uma licitação verificando se as informações apontadas pela terceirizada são compatíveis com os custos reais da prestação de serviços. E não avaliar só os preços dos concorrentes”, observa.

Inaldo de Vasconcelos Soares, autor de livros sobre licitação, explica que o modelo atual favorece a corrupção e os jogos de cartas marcadas. “Não existe fraude sem a conivência do órgão contratante. E falta gestão de qualidade no serviço público. É preciso fiscalizar a performance das empresas durante a vigência do contrato”, afirma. Segundo ele, muitas empresas boas e corretas são prejudicadas pela concorrência desleal com essas aventureiras, que só conseguem espaço dentro do governo “porque não são fiscalizadas com rigor”. (SK e GA).

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