Correio Braziliense/Guilherme Araújo e Simone Kafruni
Contratos fechados pelo setor público com prestadores de
serviços não têm transparência. A situação é tão grave que nem mesmo os órgãos
fiscalizadores, como o TCU, sabem exatamente em que condições mais de 87 mil
trabalhadores atuam Funcionários terceirizados se encontram na hora do almoço
para avaliar os seus constantes problemas. Companhias disputam contratos que
somam R$ 8 bilhões por ano Trabalhadores sem receber rendimentos e direitos
trabalhistas fazem protesto em frente ao Ministério da Justiça. "Não há controle algum. Faltam fiscalização e garantia
do serviço prestado com uma qualidade mínima" Fábio Medina Osório,
ex-promotor de Justiça.
Os contratos bilionários de terceirização de mão de obra na
Esplanada dos Ministérios são verdadeiras caixas-pretas, que nem mesmo os
órgãos fiscalizadores, como o Tribunal de Contas da União (TCU), conseguem
detectar as irregularidades e evitar a sangria dos cofres públicos. A farra é
tamanha nesse mercado de mais de R$ 8 bilhões anuais, que os calotes nos
trabalhadores viraram rotina. O caso mais recente envolve a Renender, que
atuava no Ministério das Relações Exteriores (MRE) e na 10ª Procuradoria
Regional do Trabalho do Distrito Federal, vinculada ao Ministério Público do
Trabalho (MPT).
O descaso é tamanho que, mesmo o Sindiserviços denunciando o
golpe, o Itamaraty, que terá de pagar R$ 68,4 mil, informou, por meio de sua
assessoria de imprensa, que não localizou o contrato com a Renender nem sequer
conhece a empresa que destinou mais de 30 pessoas para trabalhar no órgão. Já o
MPT reconhece a contratação de cinco recepcionistas e uma copeira, que cobram
R$ 43 mil. Mas o sindicato assegura que são oito os funcionários terceirizados.
A Renender, que recebeu antecipadamente os recursos, já
havia alertado sobre a sua incapacidade de honrar os compromissos com os
trabalhadores, mas o MPT garantiu que tudo está em ordem. Ou seja, os
terceirizados continuam prestando serviços ao órgão, e os salários estão em
dia. “Esse descompasso de informações só reforça o quanto a situação está fora
de controle e as empresas fazem o que querem”, diz um funcionário do Ministério
do Planejamento que lida com o assunto. “Vários órgãos estão pagando duas vezes
os contratos. Para as empresas, que somem com o dinheiro público, e para os
trabalhadores, que ficam sem os rendimentos”, complementa.
Desprotegidos
Dados compilados pelo Correio indicam que pelo menos 87 mil
terceirizados prestam serviços na Esplanada dos Ministérios. Mais de metade
deles já foram vítimas de golpes e não conseguiram reaver os direitos. Como
dependem desses empregos para viver, acabam se submetendo às irregularidades.
Saem de uma empresa para outra acreditando que não serão mais ludibriados. Esse
processo de autoenganação foi rotina para uma ex-funcionária da terceirizada
Works, que presta serviços ao Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e ao
Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). Sem se deixar
identificar, temendo retaliações, ela conta ter percebido a diferença do valor
de recolhimento de FGTS que a empresa informava no contracheque e o que
realmente era depositado no banco. “A divergência ocorria desde 2011. Fui
reclamar e me demitiram”, afirma.
Nem mesmo os casos reincidentes de descumprimento dos
contratos, falência das empresas ou as denúncias de companhias que atuam
irregularmente na Esplanada mobilizam o governo a reagir aos abusos. Um passo à
frente foi a criação do Portal da Transparência, para tentar dar alguma
visibilidade aos contratos, mas nem os servidores públicos sabem como funciona a
ferramenta. Muito menos conseguem explicar como achar informações nessa
plataforma virtual.
O Correio levou mais de quatro meses para obter com órgãos
federais dados sobre terceirizados. Muitos ministérios informaram o que acharam
melhor ser publicado, mas, mesmo assim, com informações desencontradas do
Portal da Transparência. Alguns se negaram a conceder dados detalhados. O
Ministério do Planejamento, por exemplo, responsável por controlar os gastos da
administração federal, informou que o governo pagou cerca de R$ 2 bilhões às
empresas no ano passado. No Portal da Transparência, a despesa assinalada é
quase quatro vezes maior: R$ 8 bilhões.
Em nota, o Planejamento ressaltou que as respostas enviadas
ao Correio têm origem no Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi)
e a informação extraída do Portal da Transparência, administrado pela
Controladoria-Geral da União (CGU), “não guarda relação direta com as contas
contábeis”. Para a Controladoria, o valor que consta no portal é o correto.
Ciente desse descompasso, o TCU recomendou ao Planejamento que melhore as
formas de contratação de mão de obra não concursada.
Nem BC escapa
Os bancos do governo pecam na organização. Em quatro meses,
o Banco Central não conseguiu levantar os dados completos dos contratos com
terceirizados. Segundo a instituição, que tem como missão preservar o poder de
compra da população, não há um departamento responsável pela fiscalização das
empresas prestadoras de serviço, sendo cada setor responsável pelas suas
licitações. A Caixa Econômica Federal omitiu os dados de contratações, quais
são as empresas e quanto gasta por ano. O Banco do Brasil, por sua vez,
forneceu números gerais, também sem os detalhes solicitados.
Tal falta de organização sobre os contratos de terceirizadas
coloca em xeque o controle dos órgãos federais em relação à transparência sobre
onde e como é gasto o dinheiro público. Por trás desse descaso, há o interesse
de funcionários públicos, que levam vantagens em acobertar as irregularidades
para privilegiar uma ou outra empresa.
“Não há controle algum. Faltam fiscalização e garantia do
serviço prestado com uma qualidade mínima. Mas todas as estatais estão sujeitas
à Lei 8.429, de improbidade administrativa”, sublinha Fábio Medina Osório,
ex-promotor de Justiça. Para o especialista em contas públicas, está na hora de
o governo começar a punir os culpados. “O enriquecimento sem causa aparente de
agente público pode denotar responsabilidade. O funcionário que tem um padrão
de vida incompatível com o que ganha precisa ser investigado pela Receita
Federal e pela Polícia Federal. E cabe aos cidadãos exigirem uma fiscalização
rigorosa”, finaliza.
Barato sai caro
O órgão que contrata o serviço de uma empresa sem capacidade
econômica e financeira herda a dívida dos salários dos funcionários. “Contratar
pelo menor preço é o famoso barato que sai caro”, afirmou o professor de
Finanças Públicas da UnB Roberto Piscitelli. “As empresas deveriam ser
impedidas de participar de outras licitações e o nome dos donos, colocados num
sistema, assim seus bens seriam bloqueados”, disse. Na prática, ocorre o contrário. As empresas fecham, os
empresários abrem firmas com outro CNPJ e continuam dando golpes.
Medidas positivas
Especialistas garantem que houve avanços para garantir o
cumprimento dos contratos, como a
Instrução Normativa nº 6, que pretende proteger trabalhadores e criar
mecanismos para melhorar a fiscalização. A norma prevê maior rigor nos
critérios de habilitação técnica, econômica, financeira e jurídica das firmas.
Outra medida considerada positiva é a Lei 12.846, que pune dirigentes de empresas, em vigência desde
janeiro. Mas o efeito prático ainda é desconhecido. “Falta estatística para
saber como estão sendo aplicadas as normas e que irregularidades estão sendo
atingidas”, ressaltou o ex-promotor de Justiça Fábio Medina Osório.
A caminho da Justiça
Como falta fiscalização dos órgãos públicos sobre a
prestação de serviços, as irregularidades nos contratos de terceirização acabam
parando na Justiça. Nessa toada, vários processos movidos desde 2011 por
empregados do Grupo Fiança, que fornecia mão de obra de limpeza e vigilância
para órgãos públicos da União e do Distrito Federal, chegaram à fase de execução.
Com a venda de um imóvel em Angra dos Reis (RJ), pertencente
ao grupo, a Justiça do Trabalho arrecadou R$ 3,2 milhões para quitar dívidas
trabalhistas de parte dos 1,9 mil processos já julgados. Os pagamentos começam
a ser realizados em maio. Em abril, R$ 2,1 milhões foram usados para arcar com
717 processos, obtidos com a venda de um imóvel do grupo, em Brasília.
Para o segundo juiz titular da 6ª Vara do Trabalho, Antônio
Umberto, com a venda de imóveis é possível obter mais rapidamente os valores
para pagar os passivos. “É mais rápido do que fazer o leilão dos bens”, diz.
O professor de finanças públicas da Universidade de Brasília
(UnB) Roberto Piscitelli avalia que as coisas só chegam a esse ponto porque, no
momento da licitação, não existia a prerrogativa de fazer uma auditoria para
verificar a contabilidade e a estrutura de custos das empresas que disputam o
pregão. “Os ministérios deveriam fazer uma licitação verificando se as
informações apontadas pela terceirizada são compatíveis com os custos reais da
prestação de serviços. E não avaliar só os preços dos concorrentes”, observa.
Inaldo de Vasconcelos Soares, autor de livros sobre
licitação, explica que o modelo atual favorece a corrupção e os jogos de cartas
marcadas. “Não existe fraude sem a conivência do órgão contratante. E falta
gestão de qualidade no serviço público. É preciso fiscalizar a performance das
empresas durante a vigência do contrato”, afirma. Segundo ele, muitas empresas
boas e corretas são prejudicadas pela concorrência desleal com essas
aventureiras, que só conseguem espaço dentro do governo “porque não são
fiscalizadas com rigor”. (SK e GA).
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